O 11 de Outubro de 2022 marcou o 60º aniversário da abertura do Concílio Vaticano II, com uma Missa celebrada pelo Papa Francisco na Basílica de São Pedro. Dos quase 3.000 bispos que participaram no Concílio, apenas cinco “padres do Concílio” ainda hoje estão vivos, incluindo um cardeal, o nigeriano Francis Arinze, que participou na última sessão em 1965. Bento XVI contribuiu para o Concílio Vaticano II como teólogo especialista, mas ainda não era bispo.
Enquanto o Papa Francisco se mostrou um filho espiritual de João XXIII, canonizando-o e defendendo também um aggiornamento da Igreja, o P. Daniel Moulinet, padre da Diocese de Moulins e professor de História no Instituto Católico de Lyon, explica como Pio XII estabeleceu as primeiras diretrizes para uma reforma da Igreja que os seus sucessores concretizaram desde então. Ele também revê o legado do Concílio Vaticano II, que o atual processo sinodal continua a infundir.
O Papa Francisco disse por vezes que um Concílio leva 100 anos a assimilar. Podemos dizer, contudo, que o Concílio Vaticano II, 60 anos depois, foi assimilado, ou ainda há temas a serem aprofundados?
Creio que foi plenamente assimilado em muitos pontos: a nível da liturgia, por exemplo, a questão da participação plenamente ativa e consciente dos fiéis foi assimilada pela maioria do povo cristão. O lugar da Sagrada Escritura é agora plenamente aceito. A estrutura de um sacramento, a sua celebração, já não é concebida sem a intervenção da Palavra de Deus. No passado, este não era necessariamente o caso. A Eucaristia é agora pensada como um “todo”; já não existe esta dissociação entre o que era chamado de “pré-missa” e a consagração. A Palavra de Deus tomou o seu pleno lugar.
Em termos de eclesiologia, muitos aspectos têm sido bem integrados. Em particular, temos visto o aparecimento da noção de “presbitério” em torno do bispo em cada diocese, e os padres estão muito mais conscientes disso do que costumavam estar. Mas ainda há coisas a explorar. A prática dos padres que ouvem os fiéis precisa de ser aprofundada. Alguns clérigos continuam reticentes, mas o Espírito Santo também fala através dos leigos, como nos lembra o Concílio.
Quais foram os precursores do Concílio? Podemos dizer que Pio XII previu a necessidade de mudança?
A nível litúrgico, o Papa Pio XII já tinha aberto o caminho para importantes mudanças na sua encíclica de 1947 Mediador Dei, que pôs em prática outra encíclica, Mystici Corporis Christi (1943). O desafio era pensar na Igreja como um corpo e aplicar esta visão à liturgia. Cada membro dos fiéis tornou-se assim membro de um corpo: já não se podia dizer que o padre celebrava a Missa e que os fiéis simplesmente assistiam, como num teatro.
Pio XII tinha também permitido a publicação de lecionários com tradução para a língua local, a partir dos anos 50. Em alguns países, como a Alemanha e a China, era possível celebrar a Missa na língua local antes do Concílio Vaticano II. Não era este o caso na França, mas para a celebração dos sacramentos, era possível utilizar a língua local, desde que a formulação sacramental enquanto tal fosse mantida em latim.
As pessoas têm a impressão de que tudo começou com o Concílio Vaticano II, mas isto não é verdade; houve muitas transformações antes. Podemos também apontar para o restabelecimento da Vigília Pascal em 1954. Sem o pontificado de Pio XII, o Concílio não teria tido o mesmo ponto de partida. Teria começado muito mais atrás. Pio XII fez avançar as coisas, e João XXIII amplificou o movimento iniciado pelo seu predecessor.
Os tradicionalistas censuram frequentemente o Concílio Vaticano II por ter contribuído para a crise de identidade que o catolicismo viveu a partir dos anos 70. Mas será que podemos pensar, pelo contrário, que esta crise poderia ter sido ainda mais violenta se não tivesse existido o Concílio?
Talvez sim, na medida em que o confronto com a modernidade poderia ter sido ainda mais frontal. Mas, na realidade, as coisas estavam em movimento há muito tempo. O ano 1965, o ano da conclusão do Concílio, pode ser considerado como um acelerador, mas não como um ponto de partida.
De fato, houve duas fases na recepção do Concílio. Nos anos 1965-68, as pessoas não se fizeram demasiadas perguntas; pensavam que a assimilação aconteceria naturalmente. Por exemplo, os grupos da Ação Católica trabalharam muito na Gaudium et Spes. Mas a implementação foi talvez um pouco funcionalista e redutora demais.
Por exemplo, criámos o conselho presbiteral com uma espécie de lógica “democrática”, assegurando que cada categoria de padres estivesse representada neste organismo: os padres trabalhadores, os padres professores, os capelães da Ação Católica, etc… Fizemos ajustamentos cuidadosos nas dioceses, mas esta lógica estava talvez demasiado centrada na adaptação ao modo de funcionamento da sociedade, sem ir ao âmago das coisas. Começamos com a superfície, sem uma âncora espiritual.
Perante as dificuldades e divisões que marcaram a segunda fase do seu pontificado, será que Paulo VI teve um sentimento de fracasso na implementação do Concílio Vaticano II, ou estava, pelo contrário, consciente da lentidão deste processo histórico?
Paulo VI, que era um homem muito sensível, tomou de frente esta crise da Igreja e sofreu com ela. Mas ocorreu uma mudança de direção após o Ano Santo de 1975. A organização deste Jubileu tinha despertado o ceticismo de alguns no seio da Igreja. No entanto, o sucesso deste Ano Santo mudou a situação. Estas grandes reuniões recordaram-nos a importância da religiosidade popular, enquanto que depois do Concílio, alguns clérigos a tinham desqualificado, desejando acolher apenas cristãos “conscientes”, com uma fé mais intelectual e fundamentada. A reabilitação da piedade popular foi um fruto importante deste Ano Santo, e o Papa Francisco insiste hoje frequentemente na importância de promover estas formas de devoção.
O outro legado importante do Jubileu de 1975 foi o reconhecimento da Renovação Carismática. Paulo VI, incitado pelo Cardeal Suenens, Primaz da Bélgica, deu aos carismáticos o seu lugar, reconhecendo-os como um fator de rejuvenescimento da Igreja, oferecendo um novo impulso. Os bispos franceses da época, formados pela Ação Católica, foram mais reticentes, mas acabaram por entrar em diálogo com este movimento nos anos 80. Isto permitiu-lhe estruturar-se, pondo simultaneamente fim à existência de certas comunidades mal reguladas.
O longo pontificado de João Paulo II é hoje objeto de muitas leituras críticas, algumas acusando-o de ter atrasado o Concílio, de ter bloqueado certos desenvolvimentos. Mas será isto uma falsa acusação? Pelo contrário, será que ele deu ao Concílio toda a sua importância no seu magistério?
Creio que o seu pontificado estava em plena consonância com o Concílio, do qual ele próprio tinha sido um ator importante. Por exemplo, o capítulo sobre ateísmo na Gaudium et Spes deve-lhe muito. Como Papa, manteve a linha do Concílio sobre liberdade religiosa, sobre ecumenismo, e sobre diálogo com outras religiões, perante aqueles que contestaram a posição que este tomou.
Ao nível da eclesiologia, ele não recuou; muito pelo contrário. Partilhou plenamente a posição do Concílio. Hoje, as críticas estão principalmente ligadas aos excessos da Cúria no final do seu pontificado, porque a sua saúde já não lhe permitia exercer plena autoridade. O mesmo fenômeno ocorreu no final do pontificado de Pio XII. Mas seria muito simplista apontar apenas estas dificuldades, porque se tratava essencialmente de um grande pontificado.
Qual foi a posição de João Paulo II sobre a sinodalidade?
Relativamente ao Sínodo, lançou uma iniciativa baseada numa intuição talvez insuficientemente explorada: sínodos continentais, para a África, Europa, Oceânia, etc. Talvez esta intuição não tenha tido o desenvolvimento que poderia ter tido, mas creio que poderia prefigurar a forma dos futuros Concílios.
Convocar hoje um Terceiro Concílio Vaticano parece impossível. Na altura do Concílio Vaticano II, todos os bispos foram formados no mesmo molde teológico europeu. Já não é este o caso. Hoje, com a globalização, a Europa já não é o centro do mundo. Assim, talvez estes sínodos continentais tenham mostrado o caminho para um Concílio descentralizado, com textos curtos distribuídos a partir de Roma, mas depois teria de se encontrar uma adaptação de acordo com continentes e países.
Pode o atual processo sinodal ser visto como uma forma de infundir o Concílio na vida da Igreja?
Sim, creio que sim, mas ainda precisamos descobrir a forma sinodal de trabalhar. Não é apenas uma questão de fazer um evento e depois voltar para casa. Acredito que o futuro da nossa Igreja reside no apostolado dos leigos e, portanto, na sua formação espiritual. Se queremos que todos participem na vida da Igreja, devemos dar importância a uma formação que permita a cada cristão experimentar um encontro pessoal com Cristo Jesus. É por ter tido esta experiência, com a ajuda do Espírito Santo, que cada um poderá encontrar a sensibilidade de fazer parte da Igreja e tomar o seu lugar na sua construção. O Papa tem razão em falar de “discípulos missionários”, mas isto pressupõe que sejamos antes de mais discípulos, ou seja, que ouçamos Jesus Cristo, que nos deixemos ensinar. As palavras devem ter um significado prático.
A comunidade cristã deve também ter uma verdadeira consciência comunitária e fraterna, de modo a que nos levemos uns aos outros. Cada paróquia deve também assumir a dimensão da diakonia, do serviço aos pobres, que é tão importante como a liturgia e a celebração. Uma relação pessoal com Jesus Cristo e uma relação fraterna dentro da comunidade cristã são, creio eu, pré-requisitos para que a vida sinodal mude pouco a pouco a vida da Igreja, e seja ajustada ao que o Senhor pede.
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FONTE: Aleteia