Ao tomar conhecimento da páscoa de Francisco, subitamente veio-me o seguinte pensamento/sentimento: devo render graças a Deus por ter vivido os anos de pontificado de Francisco, pois certamente as décadas que virão tratarão de reconhecer a grandeza, a ousadia e a singularidade do pastoreio exercido pelo primeiro latino-americano a tornar-se Bispo de Roma.
Passados alguns minutos, vi-me motivado a refletir sobre tal pensamento/sentimento e, sem pretensões racionalizantes – mas em espírito de prece – imagino que fui me aproximando de um horizonte de sentido: privilegiados somos por ter convivido com Francisco porque ele foi o primeiro em muitas coisas na história recente da Igreja:
- O primeiro a ser eleito Pontífice com seu antecessor ainda em vida
- O primeiro Papa jesuíta
- O primeiro latino-americano
- O primeiro a assumir o nome de Francisco
- O primeiro a generosamente pedir ao povo que rezasse por ele, o novo Bispo de Roma
- O primeiro a residir na Casa Santa Marta
- O primeiro, desde os últimos, que não participou das Sessões do Concílio Vaticano II
- O primeiro a assinar uma Encíclica (Lumen Fidei) a duas mãos com seu antecessor
- O primeiro a constituir um Conselho de Cardeais para o auxiliar no governo da Igreja
- O primeiro que não tinha o costume de cantar nas celebrações litúrgicas
- O primeiro e proclamar um Jubileu Extraordinária sob o tema da misericórdia
- O primeiro a visitar alguns territórios (Iraque, por exemplo)
- O primeiro a posicionar mulheres em funções de liderança na Cúria Romana
- O primeiro a utilizar ostensivamente expressões metafóricas (“Igreja em saída”, “cheiro de ovelha”, etc)
- O primeiro a convocar um Sínodo sobre a região amazônica
- O primeiro a assinar uma Declaração acerca da fraternidade universal com uma liderança islâmica
- O primeiro a visitar uma Igreja Valdense, na Itália, depois de 800 anos
- O primeiro a se encontrar com o Patriarca de Moscou e de todas as Rússias, Kirill
- O primeiro a rezar solitário pela humanidade durante a pandemia de COVID-19 na Praça São Pedro
- O primeiro a convocar um percurso sinodal de 4 anos, envolvendo todo o Povo de Deus, sobre o tema da sinodalidade
- O primeiro que fez sua páscoa sem ter regressado a seu país de origem, a Argentina
Dado esse contexto, não me resta dúvidas de que Francisco desejou sempre “falar” muito mais por seus gestos do que por suas palavras (Francisco e sua “encíclica dos gestos”): daí porque nos parece que todas estas coisas sejam “surpreendentes”, quando, na verdade, não o são, pois o que ela “dizem” está para além das formalidades, da midiatização e das polêmicas – elas são simples e decorrem do coração do Evangelho!
Mas, então, por que nos fascinaria o fato de Francisco ser o “primeiro” em muitas coisas?
A resposta encontra-se em sua primeira Exortação Apostólica, aquela que nos permitiu conhecer o programa de seu pontificado: Evangelii Gaudium (A alegria do Evangelho), publicada em novembro de 2013.
Poderíamos até mesmo hipotetizar que o nome deste Documento foi uma junção de Evangelii Nuntiandi (de 1975, do Papa Paulo VI) e Gaudium et Spes (do Concílio Vaticano II). Se a primeira trata do anúncio do Evangelho no hoje eclesial, a segunda trata da relação da Igreja com o mundo na contemporaneidade. Ora, num mundo complexo e em constante transformação, ser o “primeiro” tem uma razão: a Igreja não pode mais esperar que todos e todas a ela acorram, mas é preciso sair, ir ao encontro, lançar-se, arriscar-se, dar o primeiro passo, “primeirear”.
Eis aí a razão!
No número 24 de Evangelii Gaudium, Francisco afirma que a primeira atitude evangelizadora da Igreja deve ser a de “primeirear”. Ele se desculpa pelo neologismo, mas explica: “A comunidade missionária experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1Jo 4,10), e, por isso, ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. Vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a misericórdia infinita do Pai e a sua força difusiva. Ousemos um pouco mais no tomar a iniciativa!”
Se efetivamente desejamos ser a Igreja de Jesus Cristo, recai sobre nós o imperativo de sermos os “primeiros” – não em sentido de prestígio ou exposição, mas no serviço e no anúncio da vida (e vida em abundância) que brota do Evangelho!
Francisco reafirmou a todo momento: não podemos nos dizer Igreja se renunciamos à missão de evangelizar! Anunciar Jesus Cristo – em suas diversas modalidades – é a razão de ser da comunidade eclesial e isso implica um “primeirear” constante, que não se apega a perfeccionismos, formalismos ou romantismos, mas está pautado na proximidade, na comunhão e numa reforma constante das formas históricas do ser Igreja, sem prescindir de sua natureza profunda e inegociável.
Se nos surpreendemos com os ineditismos de Francisco, talvez seja porque por detrás de suas surpresas há uma experiência da misericórdia de Deus que precede toda a vida de quem se diz cristão, tal como o seu lema episcopal: Miserando atque eligendo – Vendo com misericórdia e escolhendo! E esta misericórdia se refere, em última análise, ao “primeirear” de Deus, pois é ele quem toma a iniciativa e é segundo esta iniciativa que podemos amar nossos irmãos e irmãs.
Afirma Francisco: “a salvação, que Deus nos oferece, é obra da sua misericórdia. Não há ação humana, por melhor que seja, que nos faça merecer tão grande dom. Por pura graça, Deus atrai-nos para nos unir a Si […] O princípio da primazia da graça deve ser um farol que ilumine constantemente as nossas reflexões sobre a evangelização” (Evangelii Gaudium 112).
O “primeirear” evangelizador de Francisco reside no fato de que “nós amamos porque Deus nos amou primeiro” (1Jo 4,19).
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Por
Diogo Marangon Pessotto
Gerente de Identidade Institucional da PUCPR