O legado do Papa Francisco: do serviço à maior abertura ao protagonismo leigo na Igreja
* Prof. Dra. Ana Beatriz Dias Pinto
Na manhã desta segunda-feira, 21 de abril de 2025, o mundo amanheceu em silêncio e reverência diante da partida de um dos papas mais carismáticos e transformadores da história recente da Igreja Católica. Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, encerrou sua missão terrena deixando um legado profundamente marcado pela simplicidade, coragem pastoral e amor incondicional pelos pobres e excluídos. Seu pontificado, iniciado em 2013, renovou a esperança dos católicos em todo o mundo — e particularmente resgatou o papel dos leigos na vida e missão da Igreja.
Desde a sua eleição, Francisco rompeu protocolos, optou pela cruz de ferro em vez da de ouro, recusou os apartamentos luxuosos do Vaticano e escolheu o nome inspirado em São Francisco de Assis. Esses sinais de humildade já prenunciavam um novo tempo para a Igreja: um tempo de retorno ao essencial, de diálogo com o mundo, de escuta sensível e compromisso com os que mais sofrem.
Um Papa próximo do povo: voltado ao serviço e a um magistério profético
Sua primeira viagem internacional como Papa foi ao Brasil, na Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro, em 2013. Ali, diante de milhões de jovens, ele lançou o apelo que marcaria seu papado: “Ide, sem medo, para servir!” Essa convocação não foi apenas um chamado vocacional, mas uma afirmação da missão evangelizadora de todos os batizados, especialmente os leigos, protagonistas da transformação social a partir da fé vivida com coerência.
Francisco enfatizou incansavelmente a importância da “Igreja em saída”, uma Igreja que vai às periferias, escuta, acompanha, denuncia injustiças e serve com ternura. Em todos os continentes, seus gestos ecoaram com força: ao lavar os pés de mulheres e muçulmanos em presídios, ao encontrar refugiados em Lampedusa, ao visitar favelas e denunciar a globalização da indiferença. Seu compromisso com os marginalizados não era retórico — era visceral, evangélico, profundamente encarnado.
O pensamento do Papa Francisco foi consagrado em quatro encíclicas de grande impacto e profundidade: Lumen Fidei (2013, iniciada por Bento XVI), Laudato Si’ (2015), Fratelli Tutti (2020) e Dilexit Nos (2024). Juntas, essas obras compõem um corpo doutrinal que integra fé, justiça, ecologia, fraternidade e missão.
Em Laudato Si’, Francisco convoca todos — governos, empresas, famílias e indivíduos — à conversão ecológica, defendendo o cuidado com a Casa Comum como responsabilidade ética e espiritual. Já em Fratelli Tutti, propõe uma nova ordem social baseada na amizade, no diálogo e na paz, rejeitando o individualismo, o racismo e os muros que separam povos e culturas.
Mas foi em Dilexit Nos, sua última encíclica, que o Papa Francisco retomou com vigor a centralidade do amor como motor da missão cristã. Inspirado no Coração de Jesus, ele relembra que a ternura é uma força evangelizadora e que a misericórdia transforma a sociedade. Essa proposta de um amor ativo, que se traduz em justiça, acolhimento e escuta, dialoga diretamente com a vocação laical: ser presença de Cristo no mundo, nas famílias, nos ambientes de trabalho, na política, na cultura e nos mais variados espaços sociais.
Laicato: vocação e missão
Um dos traços mais marcantes do pontificado de Francisco foi sua ênfase no protagonismo dos leigos. Ele afirmou repetidamente que “os leigos não são os que ‘ajudam o padre’, mas os que, pelo batismo, são corresponsáveis pela missão da Igreja”. Sua exortação apostólica Evangelii Gaudium (2013) reforça que o Espírito Santo concede aos leigos dons e carismas para a construção de uma Igreja viva e missionária.
Nas dioceses do mundo todo, inclusive na Arquidiocese de Curitiba, esse chamado encontrou forte ressonância. Diversas iniciativas de formação, participação nos conselhos pastorais, coordenação de comunidades, ação sociotransformadora e evangelização em ambientes laicos foram impulsionadas pelo estímulo do Papa. Os leigos redescobriram sua vocação não como “ajuda” à hierarquia, mas como presença ativa e protagonista na transformação do mundo à luz do Evangelho.
Francisco também reconheceu a importância das mulheres na vida da Igreja. Ao nomear mulheres para cargos inéditos na Cúria Romana — como a irmã Simona Brambilla, a primeira mulher a liderar um organismo vaticano de relevância — abriu caminhos concretos para uma maior participação feminina nas estruturas eclesiais.
Uma Igreja reformada para o mundo e um legado que permanece
Durante seu pontificado, Francisco empreendeu importantes reformas internas, como a reorganização da Cúria Romana, o combate à corrupção no Vaticano, a criação de novos dicastérios com foco evangelizador e a atualização do Direito Canônico. Em 2024, aprovou ainda uma reforma significativa no ritual fúnebre papal, eliminando formalidades pomposas em favor de uma liturgia mais sóbria, coerente com o espírito evangélico que guiou sua vida.
Mais do que mudanças institucionais, essas reformas revelaram um estilo: uma Igreja despojada, transparente, missionária, enraizada na fé e aberta ao diálogo com todos. Uma Igreja em constante discernimento, capaz de adaptar-se sem trair sua identidade.
A partida de Francisco deixa uma dor profunda no coração dos fiéis, mas também a certeza de que seu testemunho permanece vivo. Sua voz profética continuará ecoando nas pastorais sociais, nos conselhos de leigos, nas famílias, nas universidades católicas, nas comunidades eclesiais de base, nos encontros de jovens e nos gestos simples de compaixão de cada cristão.
O Papa Francisco nos ensinou que o Evangelho é ação concreta, que a fé se vive no cotidiano e que todos, sem exceção, são chamados à santidade, à missão e à fraternidade. Como ele mesmo disse: “a santidade não é para poucos, mas para todos”. Seu pontificado foi, e será sempre, um farol de esperança para a Igreja do terceiro milênio.
Descanse em paz, Papa Francisco. E que teu legado siga iluminando os passos da Igreja e do povo de Deus.
* Ana Beatriz Dias Pinto é doutora em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Ali atua como docente, além do Studium Theologicum Claretiano de Curitba e da Faculdade São Basílio Magno (FASBAM).