Uma Campanha da Fraternidade mais que urgente e necessária

“Como não pensar na violência causada à vida de milhões de seres humanos, especialmente crianças, constrangidos à miséria, à subnutrição e à fome, por causa da iníqua distribuição das riquezas entre os povos e entre as classes sociais?”. A frase impactante é de São João Paulo II, e está na Evangelium vitae (EV 10), obra maior da defesa da vida. Num mundo cada vez mais opulento, no qual a humanidade desfruta de confortos e qualidade de vida nunca vistos antes, poucas deveriam nos escandalizar e indignar tanto quanto a existência de pessoas passando fome.

Erradicar a fome do mundo até 2030 é um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Contudo calcula-se que mais de 5 milhões de pessoas ainda morram de fome anualmente (compare-se com os cerca de 15 milhões de pessoas que, até agora, morreram vítimas de COVID-19). Após um período de grandes avanços para a segurança alimentar em todo o mundo, recentemente o combate a fome tem sido comprometido em função das guerras, das mudanças climáticas e da pandemia. No cenário internacional, os piores quadros de desnutrição e fome se encontram nos países pobres da África e do Sul/Sudeste asiático.

A fome, também entre nós

Em 2010, o Brasil, que havia saído da Mapa Mundial da Fome, foi inclusive um dos países com maior sucesso no combate à insegurança alimentar. Contudo, a crise econômica da última década e os efeitos da pandemia de COVID-19 fizeram com que o problema voltasse a crescer entre nós. A maior parte dos especialistas aceita a estimativa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Pensann), feito em parceria com seis entidades e ONGs, de que atualmente cerca de 33,1 milhões de brasileiros enfrentavam uma situação de insegurança alimentar grave (15,5% da população) e um número semelhante de pessoas estão em situação de insegurança alimentar moderada (15,2% da população).

A nomenclatura especializada exige uma explicação. A subnutrição é uma condição fisiológica, que só pode ser tecnicamente comprovada por exames laboratoriais. Por isso, os estudos populacionais estimam o grau de “segurança alimentar”, que indica a quantidade e qualidade de alimento disponível numa família. A insegurança alimentar é considerada leve quando as famílias sacrificam a qualidade de alimento para garantir a quantidade. Pressionadas pela pobreza, deixam de consumir alimentos proteicos para se satisfazerem com outras comidas mais baratas. Nos casos de insegurança alimentar moderada a grave, as famílias não conseguem adquirir nem mesmo os alimentos mais baratos e menos nutritivos – e essa é a situação atual de cerca de 30% da população brasileira.

Essas pessoas, em sua maioria, não “morrerão de fome”. Serão vítimas de outras doenças, agravadas pelo estado de debilidade física decorrente da falta de alimentação adequada. Além disso, as crianças que sofrem de desnutrição terão seu desenvolvimento comprometido e muitas vezes nunca conseguirão recuperar esse déficit de desenvolvimento ao longo de toda a vida.

Um dado relevante, na situação brasileira, é que a porcentagem da população sofrendo de insegurança alimentar é maior na zona rural (cerca de 35%) do que na zona urbana (cerca de 30%). Isso significa que mesmo pessoas que vivem em contato com a agricultura não conseguem produzir o alimento necessário para si próprias, seja por falta de acesso a solos férteis, seja por falta de recursos para a prática da agricultura familiar – que lhes garantia o mínimo para se alimentar.

Os números são confiáveis?

Muita gente desconfia dessas estimativas, ainda que se baseiem em estudos sérios e bem documentados. Toda estimativa comporta uma margem de erro. Alguns aspectos, contudo, devem ser considerados…

Evidentemente essas condições não se distribuem igualmente por todo o território nacional. Antigamente, era comum se falar em “bolsões de pobreza”, para se referir a contextos em que as condições materiais eram muito piores do que para a população em geral. A fome é um problema mais sentido entre as populações rurais do Norte e Nordeste do que entre aquelas do restante do País, na periferia das cidades e entre os desempregados do que entre o restante da população urbana. Isso pode levar a uma certa “invisibilidade” das situações de insegurança alimentar. Muitos duvidam que ela seja um problema grave simplesmente porque não têm acesso aos contextos sociais nos quais a fome é mais presente.

Nesse aspecto, talvez nós cristãos precisemos nos lembrar da defesa que Abraão fez dos justos de Sodoma (Gn 18, 17-33). O Patriarca começa perguntando se Deus destruiria a cidade caso ali se encontrassem, entre os muitos ímpios, 50 justos. Deus diz que não, e Abraão continua até que Ele admite que não sacrificaria a cidade inteira se ali houvesse apenas 10 justos. O magistério da Igreja nos ensina que cada pessoa é única e não pode ter sua dignidade violada (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, CDSI 131-134). A fome é uma indignidade que não poderia nos deixar indiferentes, mesmo que afetasse a poucos. Se afeta a tantos, maior o nosso compromisso…

A Quaresma e a fome

Quando a CNBB nos convida a refletir e agir para combater a fome no Brasil, nesta Campanha da Fraternidade de 2023, recebemos um chamado claro à nossa conversão. Cada um de nós tem os seus pecados e o seu caminho ascético de conversão, mas todos os caminhos têm em comum a necessidade de sairmos de nossa autorreferência para respondermos a Deus – e a fome de nossos irmãos é um desses “clamores que sobem aos céus”, desafiando a nossa fé e a nossa conversão.

O combate à fome exige uma atuação dos órgãos governamentais, com vistas à justiça social, à promoção humana e o desenvolvimento integral da Nação. As organizações sociais e nossas comunidades, contudo, não podem se omitir delegando toda a responsabilidade ao Estado. Ações solidárias fazem parte da tradição cristã e permanecem necessárias a despeito da atuação do Estado – aliás, as melhores soluções são sempre aquelas que nascem da cooperação entre o Estado e as organizações sociais. Por fim, cada um de nós tem sua responsabilidade pessoal, tanto na colaboração com as ações sociais de nossas comunidades quanto com a cobrança de um posicionamento responsável de combate à fome por parte de nossos políticos eleitos.

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Por

Francisco Borba Ribeiro Neto – Aleteia